terça-feira, 30 de março de 2010

Índio também luta pela igualdade. Aguardamos mais trabalhos relacionados à temática

Justiça e Sociedade
Projetos de “branco” para índios
Estudo da UnB mostra que ações não respeitam tradições de poder e distribuição de recursos é desigual
ANTROPOLOGIA

Daiane Souza/UnB Agência


Baniwa trabalhou com 18 projetos da Federação Indígena do Rio Negro
As comunidades indígenas brasileiras passaram a se organizar nos últimos 20 anos em associações legalmente credenciadas para receber financiamento do governo federal e agências internacionais. No entanto, na disputa por recursos para artesanato, educação e saúde, os índios são submetidos a modelos de gestão incompatíveis com a cultura tradicional. Internamente, as tribos vivenciam hoje conflitos que envolvem mudanças nas relações de poder e distribuição de recursos fora da lógica indígena.
A constatação é do pesquisador Gersem Baniwa, primeiro índio a defender uma dissertação de mestrado em Antropologia no país. O trabalho foi apresentado ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do professor Henyo Barreto, em abril de 2006, com o título “Projeto é como branco trabalha: as lideranças que se virem para aprender e nos ensinar”: experiências dos povos indígenas do Alto Rio Negro.
No estudo, o índio da etnia Baniwa enfoca 18 projetos desenvolvidos pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). A entidade reúne 68 organizações de 23 povos indígenas. Por meio da federação; governos, ongs e agências financiam ações como saneamento básico, reforma de escolas, preservação do meio ambiente e economia comunitária.
O levantamento de Gersem mostrou que as instituições públicas são a fonte de recursos em 80% dos projetos. Os 18 programas da federação analisados movimentam cerca de R$ 15 milhões por ano. “Econômica e tecnicamente, as ações podem ser consideradas bem-sucedidas e sustentáveis, mas com impacto cultural significativo e preocupante, que pode, inclusive, inviabilizar as ações em pouco tempo”, avalia Gersem. Segundo ele, a forma de organização do trabalho imposta pelos financiadores não respeita a lógica interna indígena. “Os gestores dos projetos são jovens mais escolarizados, fluentes no português, que administram o dinheiro recebido, criando novos espaços de poder ao lado dos tradicionais”, revela. A distribuição dos benefícios também se dá de maneira desigual, causando conflito entre as famílias e até mesmo entre os povos.
ESTUDO DE CASO – Para detalhar o problema, o pesquisador da UnB focalizou um dos projetos sob a responsabilidade da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a partir de financiamentos externos. Trata-se do Arte Baniwa, por meio do qual algumas famílias dessa etnia produzem e vendem cestarias de arumã (palha extraída de palmeira).
O projeto existe há cerca de 10 anos e movimenta cerca de R$ 300 mil por ano. Os produtos são vendidos no mercado nacional, para lojas como a Tok Stok. Toda a gestão é feita por índios, mas o padrão do negócio é estabelecido pelo mercado.
“O Arte Baniwa busca manter as tradições, incentivando as famílias a confeccionar a cestaria apenas nas chamadas horas vagas, depois das atividades de caça e rituais. Existe a pressão comercial, mas essa perspectiva tem sido seguida, com a incorporação de técnicas científicas de manejo pesquisadas pelos próprios índios”, reconhece Gersem.
Por outro lado, segundo ele, a forma de remuneração das famílias tem levado ao povo Baniwa uma sensação de tratamento diferenciado. Das 900 famílias da etnia, apenas 250 estão envolvidas no projeto. Elas produzem cerca de 30 peças por mês, recebendo por isso quase R$ 80. O dinheiro é utilizado para a compra de sabão, sal, roupa e material de trabalho. Quando sobra, costuma ser aplicado em eletrodomésticos, como rádios e relógios.
Apesar dos artesãos continuarem vivendo na comunidade, participando da caça e de rituais, eles acabam tendo condições de vida diferentes. “Os recursos não são distribuídos igualmente no grupo, como determina a tradição Baniwa. As regras estabelecidas impedem que isso aconteça”, explica o mestre em Antropologia pela UnB.
De acordo com ele, os modelos de financiamento dos projetos indígenas exigem a formação de associações que forjam, inclusive, uma nova camada de lideranças. Para Gersem, são necessárias mudanças na legislação que permitam as comunidades se candidatar diretamente aos recursos. Com isso, as lideranças tradicionais participariam mais do processo e retomariam a hierarquia. Só depois, índios capacitados fariam as funções de contabilidade e administração.
CONTATO
Gersem Baniwa, pelos telefones (61) 9677 7427 ou (92) 3646 1871 ou (92) 8804 3438 ou pelo e-mail gersem@unb.br.


PERFIL
Daiane Souza/UnB Agência


Gersem Baniwa é o primeiro índio com mestrado em Antropologia no país pela Universidade de Brasília (UnB). Formado em colégios salesianos e graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ele foi secretário municipal de Educação e Meio Ambiente de São Gabriel da Cachoeira (AM).
TRIBO BANIWA



No Brasil, o povo Baniwa vive na Terra Indígena Alto Rio Negro, na região do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), às margens do rio Içana. Em território brasileiro, são cerca de seis mil índios desse grupo. Na Colômbia e Venezuela, estão outros seis mil. No século XIX, os Baniwa foram escravizados durante a fase alta de extração da borracha. Cerca de mil índios acabaram mortos. A partir de 1910, os missionários salesianos se estabeleceram na região e estão lá até hoje. A presença das igrejas católica e protestante também é marcante na área. Quanto à moradia, os índios deixaram de viver em malocas e hoje, moram em vilas com casas de barro e palha, divididas por família (uma em cada habitação). No entanto, os rituais sagrados e de iniciação continuam sendo realizados. A maior parte dos índios fala apenas Aruak, com pouca fluência em português. A alimentação do povo é garantida pela caça, roça da mandioca e coleta de frutas.